Crônicas que ninguém lê: Água não envelhece


               Vou tentar ser imparcial em meu relato. Num primeiro momento me senti culpado, julgado e condenado pelo veredito proferido por mim mesmo em meu próprio desfavor. Segundos depois, não me convenci e resolvi atuar como advogado de defesa, disposto a anular a decisão, recorrer à última instância, se preciso.

        Lá estava eu. Em um daqueles dias em que o dinheiro está curto, mas o suficiente para suprir as pequenas necessidades do momento. Vinte e seis reais no débito. Terminal de autoatendimento, já prestes a concluir o meu intento, quando aparece uma senhora e me pede um favor. Como descrevê-la? Alta, cabelos brancos, encaracolados. Aparentava uns setenta e cinco anos. Depois descobri que tinha um pouco mais do que isso.

        Pediu-me um favor, que de início não consegui entender. Apontei para uma funcionária, mas ela insistiu. Estava com duas garrafas de um litro cada. Água mineral. Não recordo a marca. Indaiá, talvez. Na mão uma nota de cinco e outra de dois reais. Queria que eu acrescentasse à minha compra os seus itens e prontamente eu seria ressarcido no mundo real do dispêndio digital.

         -Não posso senhora! Estou com o dinheiro contado.

         -Estás ruim, hein?

         -A senhora também.

         -Eu sei o que é isso.

        Está última frase ela deve ter falado para se referir ao tempo em que supostamente também passou por privações financeiras e seguiu com o seu ar de superioridade para combater o orgulho ferido. Acompanhei com os ouvidos o desfecho do caso. Na segunda tentativa, a senhorinha conseguiu o que queria. Por um momento deixei para lá e esqueci o ocorrido. Deletei, joguei na lixeira da memória para não ocupar espaço.

        Porém, não sei se ela ficou a me esperar na saída, como os moleques do meu tempo faziam quando queriam resolver as desavenças, mas lá estava ela. Deve ter ficado me observando, na espreita e até treinando mentalmente o que, para ela seria o xeque-mate, libertador que me colocaria no meu lugar. Escolheu uma metáfora, a qual já deve ter sido usada em outros momentos de sua trajetória debaixo do sol.

         -Procure na prateleira da vida, que você vai encontrar a gentileza.

      -Eu não podia ajudar a senhora, porque iria faltar para mim. Estava com pouco dinheiro, no débito.

        -Eu tenho oitenta anos, não são dez. Você pode falar o que quiser que não vai me convencer.

         -A senhora “mói muito”. Fala demais.

        Fui o caminho todo pensando se eu poderia ter evitado esta discussão. Faltei com o respeito, ou ela foi rude, talvez por duvidar da minha justificativa? Nem tudo está sob o nosso controle. Minha consciência está tranquila, embora haja o receio de que ela esteja sendo corrompida pela parcialidade. Será que eu deveria ter respeitado mais os cabelos brancos da mulher ou, por mais forte que possa soar - os canalhas também envelhecem? No caso, ela ou eu?

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